Perseguido. Isso mesmo, ele estava sendo perseguido. Não adiantava sua mãe e sua irmã dizerem que era tudo fantasia. Não adiantavam todos aqueles remédios que deram no sanatório após ele ter sido internado. Nada, absolutamente nada que lhe mostrassem ou falassem, iria convencê-lo de que tudo estava bem.
Tudo começou quando viu aquele cara com o facão no jardim. Era um dia como outro qualquer ele estava se arrumando para ir ao colégio, último ano, no próximo faria faculdade, estava deixando de ser um adolescente irresponsável. Foi então que ao sair do banheiro, após escovar os dentes, viu no jardim aquele homem segurando um facão e olhando para ele. Parecia um jardineiro pelas vestes e pelo próprio facão, velho e gasto. Aparentava ter uns 30 anos e naquele momento não o perturbou. Sua mãe deveria ter contratado alguém para aparar aquela grama, já não era sem tempo.
Desceu para o café. Estava meio que apressado para variar, tão apressado que quase não viu que ao invés do tigrinho simpático que deveria estar na caixa de cereal, havia uma caricatura de tigre sorrindo desdenhosamente para ele e segurando um facão, aquele facão. Seu susto foi tão grande que a cozinha ganhou uma nova e exclusiva decoração com farelos de flocos de milho por todos os lados.
Ele levantou apressado, olhou para o chão e ali estava uma caixa como outra qualquer, pulou da cadeira e correu para o carro de sua mãe, deixando com a empregada a tarefa de limpar tudo. Olhou para fora, não havia ninguém com facão nenhum, devia estar imaginando coisas, devia ser a rotina no novo colégio, malditos professores, queriam que ele passasse o ano sem se divertir, só estudando.
Sua mãe o deixou em frente a escola, já nem lembrava do ocorrido:
- Beijo filho, até mais tarde.
- Beijo mãe, obrigado.
Aula de matemática, alguém lá em cima devia estar com raiva dele para colocar logo esse matéria na primeira aula do primeiro dia da semana. Se havia uma forma pior de começar a semana além de uma aula de matemática, ele sentiria muita pena do desgraçado que a experimentasse. Sentou no fundo da sala para fazer o que sempre costumava fazer nessa aula, tirar uma soneca. Se sacanearam ele com o horário de aulas, não custava descontar um pouco.
Se soubesse o que ocorreria, jamais teria tirado aquele cochilo.
- Que coisa feia, dormindo em aula, acorde, acorde. – Ouviu o professor falar.
- Acorde, acorde, acorde, acorde.... – Foi o coro dos alunos em resposta.
- Pô, pessoal, não precisa exa...- as palavras nunca chegaram a sair da sua boca, pois quando erguei a cabeça, estava cercado pelos 45 alunos da sua sala, todos de pé e vestindo roupas surradas, assim como o professor, e cada um segurava um facão enquanto gritava para que ele acordasse.
O som de seu grito riscou sua própria alma, e talvez a partir daquele momento tenha surgido a rachadura nela que ocasionou sua loucura. Saiu correndo desvairado pela escola, gritando pra deixarem-no em paz. Parou ao se esbarrar com um dos guardas do colégio, que o segurou. Logo vieram vários colegas para ajudar a segurá-lo, ele apenas gritava, mais aos poucos foi voltando ao normal e verificou que não havia ninguém com nenhum facão por perto, seu professor estava vestindo uma roupa colorida de péssimo gosto como sempre, nada que lembrasse as roupas cinzas que vira antes. Os colegas de sala também estavam ali, olhando para ele embasbacados por não entender nada do que estava acontecendo.
Sua mãe foi chamada, levaram-no a um psiquiatra.
- O estresse o vestibular senhora, seu filho não resistiu, isso foi uma grave exteriorização da fadiga dele. Vou passar dois bons remédios que resolverão a situação. – Falava o médico diante dele e de sua mãe.
Saíram do consultório. Sua mãe visivelmente aliviada, ele ainda aéreo por tudo que ocorrera. Era tudo tão real, como poderia ser apenas um sonho? E o homem no jardim, e a caixa de cereal? Nada parecia encaixar, mas ele confiava que os remédios iriam fazê-lo melhorar. Era com essa fé que se encontrava quando foi passando pela recepção da clínica psiquiátrica e fitou a televisão que ali ficava para os pacientes em espera assistir.
Era uma série de TV que passava. Uma família sentada a uma mesa e dizendo piadas sem sentido. Então algo chamou sua atenção, por trás da mesa, sem nenhum membro da família ver, estava o homem do jardim som seu conhecido facão, ele o encarou, e foi correspondido, aquele sorriso desdenhoso do tigre da caixa de cereal estava bem ali, na TV. Foi demais para sua mente, não conseguiu compreender aquilo, nem aceitar, então ele simplesmente parou ali, encarando a TV, sem pronunciar uma só palavra.
Seis meses no sanatório, foi isso que ganhou. E cada vez piorava mais. Agora via pessoas com o facão por toda parte, pela janela, na televisão, em reflexos no espelho, nunca se aproximavam, apenas ficavam ao longe segurando o facão enferrujado e rindo desdenhosamente para ele.
Pensou que ficaria a vida toda naquela situação, mais ainda pioraria. De alguns dias para cá todos portavam os facões. Não deixava ninguém se aproximar dele, parece que vinham quando dormia e aplicavam agulhas nele, durante o dia ninguém ousava entrar em seu quarto no sanatório. Precisava sair dali, parece que aquelas pessoas do facão o aprisionaram naquele quarto apenas para aterrorizá-lo, nem sua mãe via mais.
Durou várias semanas com as pessoas do facão olhando para ele pelo vidro da porta de seu quarto. Ou entrando e ficando paradas no portal por vários minutos até sair. Achou que seria assim o resto da sua vida, mas um dia aquele mesmo homem no jardim, do primeiro dia, lá entrou e ficou parado olhando para ele. Ele apenas olhou com medo como sempre, sem nada falar.
- Oi. – Falou o homem em um sorriso debochado.
Ele nada respondeu, há muito esquecera como falar, apenas emitia sons guturais de horror de vez em quando, mais até esses eram raros, pois o horror ficou tão constante em sua vida que gritar de medo se tornou enfadonho.
- Vamos, fale algo, não quer me perguntar nada? – insistiu o homem.
Diante de novo silêncio, o homem voltou-se para a porta e falou:
- Sil, pode entrar, ele está pronto.
Entrou então no quarto uma criatura que mais parecia um morcego, e a visão dela mereceu um sonoro grito de horror, aquela coisa não poderia existir, o homem do facão era assustador, mas era uma pessoa, já aquilo. Parecia a mistura de um morcego com um anão deformado. Possuía cerca de um metro e meio, sua boca parecia ser na vertical e não era possível identificar nariz ou orelhas, tão o nível de deformidade. Asas de couro apodrecido lhe caiam nas costas, e não pareciam nem um pouco capazes de fazê-la voar.
- Já não era sem tempo Fregen.- Falou a criatura grotesca quando entrou. – Seis meses engordando esse aqui.
Ela então o encarou, a criatura chamada Sil. Ao mesmo tempo em que puxava das suas vestes imundas aquilo que ele conhecia muito bem. O velho facão, idêntico ao que o homem chamado Fregen carregava na mão.
- Vamos criança, olhe para mim, olhe para mim. – Gritou Sil desvairadamente enquanto sacudia a faca para ele, como se fosse atacá-lo.
Começou a gritar, mas aos poucos foi engolindo seu grito pois o terror que tomou conta do seu corpo era de tal magnitude que o fez esquecer de gritar, esquecer de se sacudir, esquecer quem era ele mesmo. Ficou em estado catatônico e apenas uma emoção continuava viva dentro dele: o medo.
- Vamos Fregen, se apresse, passe o frasco. – Falou Sil rispidamente enquanto tomava das mãos de Fregen um frasco parecido com um tubo de ensaio de prata com uma rolha de cortiça.
Sil então pulou na cama onde ele jazia inerte e cravou a faca em seu peito, abrindo seu tórax ao meio com ele ainda vivo, e puxando para fora o coração pulsando. A criatura disforme pareceu admirar por um instante o órgão que segurava com mão, e então tirou a rolha de cortiça do tubo de ensaio e cravou o facão no coração do rapaz, caputurando todo o sangue que escorreu no tubo.
Isso não durou muito tempo. Então diante de um atento Fregen, Sil voltou ao chão e entregou-lhe o facão. Sorriu contente para o tubo e pegou dentro das vestes um pequeno frasco com um líquido tão cristalino que lembrava lágrimas, pingando uma gota do tal líquido dentro do frasco com o sangue.
- E então Sil.- Perguntou Fregen.- Quanto acha que vai render?
- Pelo menos meio quilo de medo, valeu a pena o investimento.
- E vamos vendê-lo diretamente no mercado faérico? Ou você tem algum comprador particular.
- Não seja idiota Fregen, claro que já tenho um comprador para isso. O que diriam se a gente aparecesse e colocasse meio quilo de medo a venda na mesma prateleira que a coragem e a honra?
- Tem razão. – Respondeu Fregen rindo. – eu não havia pensado em todos esses pormenores.
- Você não é bom pensando Fregen, então procure pensar pouco e agir mais, fazendo aquilo que mando, que as coisas correrão bem para nós. Agora deixe eu me disfarçar de enfermeira de novo e vamos saindo daqui. Que estou com esperanças de conseguir repassar essa mercadoria ainda hoje.